Pacientes que lutam por medicamentos de alto custo enfrentam barreiras para recebê-los mesmo após decisões judiciais
Duas
ações sobre direito a esses remédios estão paradas no STF e correm o
risco de voltar à estaca zero após morte de uma das autoras.
Publicado por:Elinho Pro/
As histórias de duas pacientes que simbolizam a luta por medicamentos
de alto custo no SUS mostram que, mesmo após decisões judiciais
favoráveis, ainda há entraves que impedem que os remédios cheguem a quem
precisa e na hora certa. Além do tempo da Justiça, há o tempo dos
trâmites burocráticos em órgãos de saúde estaduais, como análise de
documentos médicos e abertura de licitações para compras dos remédios.
A potiguar Carmelita Anunciada de Souza, de 81 anos, e a mineira
Alcirene de Oliveira, que morreu no ano passado, ficaram conhecidas no
país porque duas ações sobre os casos delas foram parar no Supremo
Tribunal Federal (STF). Esses processos ganharam status especial, o que
significa que a decisão serviria de parâmetro para todas as ações
semelhantes. Mas não há prazo para o julgamento e, com a morte de uma
delas, pode ser que a discussão volte à estaca zero no STF (entenda mais abaixo).
Carmelita Anunciada de Souza, de 81 anos, convive com hipertensão
pulmonar há 12 anos e conseguiu em duas instâncias na Justiça o direito
de receber um remédio que custa R$ 2,8 mil por mês. Mas, desde 2011, ela
enfrenta dificuldades para conseguir os comprimidos com a regularidade
que precisa. A família já vai entrar com a quarta ação para que isso
aconteça.
A idosa entrou na Justiça pela primeira vez em 2006, depois de ter
feito uma cirurgia no coração, para obrigar o Estado a fornecer o
medicamento chamado Revatio (nome comercial do citrato de sildenafila).
Ele já foi aprovado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária
(Anvisa), mas, na época, não estava na Política Nacional de Medicamentos
– ou seja, não estava nos estoques dos SUS.
Esse remédio melhora a capacidade de realizar atividades físicas e
diminui a pressão no pulmão. Sem tomá-lo, Carmelita sente mais fortes os
efeitos da doença. Cansaço, indisposição, variação de pressão – hora
baixa demais, hora alta – e dores nas articulações são parte do
cotidiano dela.
Sinezio Mariano de Lima, filho dela, conta que vai mensalmente até a
Unidade Central de Agentes Terapêuticos (Unicat) pedir os remédios. “De
2016 para cá, às vezes faltava em um mês e chegava no outro. Mas nunca
demorou tanto quanto agora. Estamos desde o final de 2017 sem o remédio.
Vamos lá, e eles dizem que está em falta”, relata.
“Na Unicat eles dizem que estão em processo licitatório para a compra do Revatio, mas nunca chega. Está desde o final do ano passado assim”, afirma Sinezio.
Ele diz que irá pedir novo laudo médico sobre a condição da mãe para
entrar na Justiça novamente. Carmelita deposita na Justiça a esperança
de garantir o remédio, que lhe traz mais qualidade de vida. “Mas não
tenho nada a reclamar, só a ofertar. É assim que eu vivo. A gente vai
atrás por causa da necessidade.”
Anos de espera
O caso de Alcirene se juntou à estatística dos que morrem aguardando um
medicamento de alto custo. Ela morreu um ano após o STF determinar a
compra de um remédio para o tratamento de hiperparatireoidismo
secundário em pacientes com doenças renais – quando o mau funcionamento
dos rins gera acúmulo do hormônio PTH no corpo.
A briga começou em 2009, quando a paciente entrou na Justiça pedindo
acesso ao cloridrato de cinacalcete, vendido sob o nome comercial
Mimpara, um medicamento importado que, à época, não tinha registro na
Anvisa.
No processo, a paciente anexou laudos indicando o hiperparatireoidismo
secundário, excesso de fosfato e cálcio no sangue. O quadro não foi
resolvido com medicamentos tradicionais. Buscas na internet mostram que
uma caixa do Mimpara hoje custa de R$ 525 (genérico) a R$ 1,2 mil (de
referência).
Em nota, a Secretaria de Estado de Saúde de Minas Gerais (SES-MG) informou ao G1
que recebeu uma decisão judicial para entregar o remédio a Alcirene em
2009, mas documentação estava incompleta, por isso, pediu
complementação, especialmente dos documentos médicos. Depois disso, em 5
de abril de 2010, foi enviado à paciente um telegrama "comunicando da
disponibilidade do medicamento".
Ainda segundo a secretaria, em março de 2011, o Estado de Minas Gerais
venceu na Justiça uma apelação que reformou a sentença. Isso por conta
da falta de registro na Anvisa. "O Estado ficou então desobrigado ao
fornecimento do medicamento para a paciente", diz a nota.
Alcirene recorreu, e o caso foi parar no STF naquele ano. Mas foi
apenas em junho de 2017 que o ministro relator Marco Aurélio Mello tomou
uma decisão provisória sobre o caso (chamada tutela antecipada) e
determinou que o governo mineiro fornecesse o remédio, já que o produto
tinha sido registrado. O Mimpara foi registrado pela Anvisa em 2013, e o
cinecalcete genérico, em 2016.
Ainda assim, não adiantou. A secretaria de Saúde informou que, na
ocasião, não havia mais o medicamento em estoque e era preciso fazer um
novo processo de aquisição. "Após trâmites internos para finalização e
publicidade do processo de compras, o medicamento esteve disponível em
20/11/2017, na dispensação judicial de Juiz de Fora/MG, para a retirada
da paciente", afirmou a SES-MG.
Em 9 de dezembro de 2017 – seis anos após a chegada do recurso no STF e
um ano após a ordem de comprar o medicamento –, Alcirene Oliveira
morreu aos 39 anos sem acesso ao cinacalcete. A morte foi informada ao
STF em 19 de junho.
Processo no STF
Agora, caberá ao ministro relator, Marco Aurélio Mello, decidir se
arquiva ou dá continuidade ao processo de Alcirene – mesmo que seja
apenas para fechar um entendimento do Supremo sobre o tema. O futuro do
processo de Carmelita também é incerto, porque está atrelado ao de
Alcirene.
O julgamento dos recursos começou em setembro de 2016, mas foi
interrompido a pedido do então ministro Teori Zavascki. Com a morte do
magistrado, a análise passou às mãos do ministro Alexandre de Moraes,
que ainda não devolveu o tema à pauta. Não há data para que o caso seja
retomado em plenário.
Como reduzir o tempo de espera?
Salomão Rodrigues Filho, psiquiatra e mebro do Conselho Federal de
Medicina (CFM) por Goiás, afirma que as entidades médicas têm firmado
parcerias com tribunais e Ministério Públicos, em nível regional, para
ajudar na avaliação de cada demanda. Para ele, os esforços ainda não
estão à altura do desafio. "Se o Executivo adquirisse esses medicamentos
diretamente do fabricante, com um tempo maior, poderia até pagar
menos."
"A gente precisa superar as fases burocráticas, para que esses insumos importantes não sejam barrados." Salomão Rodrigues Filho, do CFM
Para resolver o problema a médio e longo prazo, o conselheiro do CFM
defende uma ação do governo em duas linhas: de um lado, juntas médicas
para "aconselhar" os magistrados nos processos, e de outro, investimento
em acordos internacionais para importar tecnologia, comprar lotes
maiores e, com isso, diminuir custos.
Embora não seja parte direta nos processos – o governo é representado
pela Advocacia-Geral da União (AGU) –, o Ministério da Saúde diz estar
fazendo sua parte para ampliar a oferta gratuita de medicamentos.
Segundo o ministro, de 2010 a 2018, a Relação Nacional de Medicamentos
(Rename) cresceu 98%, passando de 555 para 1.098 itens padronizados.
O Orçamento-Geral da União prevê R$ 19,4 bilhões, em 2018, para a
compra de medicamentos. O valor é 9,6% maior que os R$ 17,7 bilhões
gastos em 2017.
Além da expansão da lista de medicamentos do SUS, o ministério diz ter
criado um "núcleo de judicialização" para lidar com as demandas
apresentadas à Justiça. Em parceria com o Conselho Nacional de Justiça
(CNJ), a pasta criou um banco virtual de pareceres médicos e notas
técnicas, que podem embasar a análise de juízes sobre casos ligados à
medicina.
* Com apuração de Mateus Rodrigues, do G1 DF, e de Roberta Oliveira e Palmira Ribeiro, G1 Zona da Mata.
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